Quando Hideyuki “Hide” Miyakawa, designer de automóveis e jornalista japonês, conheceu a tradutora Maria Luisa “Marisa” Bassano no Salão do Automóvel de Turim, em 1960, não se tratou apenas do início de uma história de amor que perdura até aos dias de hoje. Criou também uma ligação entre a paixão italiana pela beleza e o engenho tecnológico japonês: um momento histórico que se repercutiu em muitos modelos da Mazda nas décadas que se seguiram.
Existe algo de mais oposto do que o design japonês e o design italiano, pelo menos à primeira vista? As diferenças entre ambos vão muito para além da simples aparência, abrangendo marcas culturais fundamentalmente distintas de cada um dos lados. A história das sociedades ocidentais é intercalada por formas geométricas distintas e imutáveis, como sejam o Coliseu de Roma, as colunas gregas ou as catedrais góticas. Por outro lado, a filosofia Zen japonesa valoriza o movimento, a adaptação e a renovação constantes, na medida em que considera as coisas que não têm forma como sendo as mais fortes, como o vento ou a água.
Esta visão do mundo teve efeitos duradouros na cultura de cada um dos países e reflectiu-se na metodologia de design, mesmo de produtos modernos, incluindo os veículos. Os automóveis de design italiano estão gravados na memória colectiva da cultura automóvel, assumindo formas memoráveis e lascivas, enquanto o design dos automóveis japoneses é geralmente mais sereno, fluido e harmonioso. Mas como diz o ditado: Os opostos atraem-se.
A mais recente demonstração disso mesmo é o premiado design “Kodo – Alma do Movimento” de Ikuo Maeda, que tem vindo a moldar os automóveis de passageiros da Mazda desde o seu início em 2010, criando uma linha unificadora e exprimindo beleza e emoção. Tudo isto inspirado na cooperação da Mazda com ateliês de design italianos, sem deixar de manter uma profunda ligação com as tradições e a identidade cultural do Japão.
O momento decisivo que reuniu estes aparentes opostos ocorreu na década de 60, quando um designer de automóveis e jornalista japonês se apaixonou por uma mulher italiana com uma paixão por automóveis e por tudo o que é japonês. Criou-se assim uma ponte duradoura entre o Oriente e o Ocidente e, através dos seus contactos com a Mazda e com as lendárias carrozzerie italianas como a Bertone, a dupla lançou as bases para o que muitos entusiastas dos automóveis considerariam a combinação perfeita: engenharia japonesa e design italiano.
That’s Amore, desu ne?
Tudo começou em 1960. Hideyuki “Hide” Miyakawa, de 22 anos, e um amigo tiraram férias do seu trabalho como designers de automóveis para realizar uma viagem de moto pelo mundo. Iniciaram a sua aventura no Sudeste Asiático, atravessaram a Índia e o Paquistão, o Médio Oriente e, finalmente, a Europa, escrevendo artigos sobre as suas experiências para uma publicação japonesa. Há um país europeu que Hide destaca de imediato: “Quando cheguei a Itália, no final de 1960, primeiro em Roma e depois em Turim, notei logo que de tratava de um local especial. Via-se cultura, arte e estilo em todo o lado.” O Salão do Automóvel de Turim tornou-se, por isso, um ponto óbvio de interesse para os dois designers. Foi então que Hide conheceu Marisa, uma das muitas tradutoras contratadas pelos organizadores do salão para o seu público internacional. A jovem de Turim estava a estudar japonês, mas também se interessava por automóveis. Hide era um grande fã de Itália e um fanático por automóveis: um casamento perfeito.
Contudo, Marisa não se contentou em mostrar a Hide e ao seu amigo o salão do automóvel: no dia seguinte, convidou-os para almoçarem com a sua família. As faíscas entre Hide e Marisa surgiram desde o momento em que se conheceram, mas a sua família também gostou do jovem japonês. Acolheram-no em sua casa, mesmo depois de Marisa ter ido para Hiroxima para estudar durante um ano. Em 1961, Hide visitou Marisa na sua terra natal e, através de uma ligação pessoal com a família de acolhimento de Marisa, conheceu Tsuneji Matsuda, então Presidente da Mazda Motor Corporation. Falaram sobre a importância do design para a indústria automóvel japonesa, estabelecendo as bases para a influência de Hide na empresa.
Entretanto, Marisa e Hide ficaram noivos e, passado um ano, casaram. Não demorou muito para regressarem a Turim. Talvez por ser a terra natal de Marisa. Mas, essencialmente, porque era o lugar perfeito para seguir a sua paixão comum pelos belos automóveis, já que Turim era o berço das três principais carrozzerie de Itália: os lendários ateliês italianos de criação de carroçarias Bertone, Ghia e Pininfarina. Em conjunto, o casal começou a negociar entre estes ateliês de design e os fabricantes de automóveis japoneses, e a Mazda, que procurava formas de criar automóveis de passageiros que marcassem a diferença, concordou totalmente.
Um começo em Familia
Em 1963, a primeira cooperação entre a Mazda e a Bertone deu origem ao correctamente denominado Mazda Familia, um automóvel familiar compacto que se assumisse como o primeiro prenúncio da presença de sucesso da marca no segmento médio C, à altura compreendido entre o Mazda Familia 1000 e o Mazda 323, até ao Mazda3 dos nossos dias. A sua primeira iteracção surgiu passado um ano na forma de uma carrinha de duas portas, seguindo-se uma versão berlina. Em 1965, um coupé completou a gama Familia.
Apesar de estar longe de ser um automóvel desportivo exótico, o seu design representava claramente o estilo Bertone. Afinal, tinha sido criado por um jovem, Giorgetto Giugiaro de seu nome, prestes a tornar-se extremamente importante para o design de automóveis em geral, mais especificamente para a relação nipo-italiana das décadas que se seguiram. Para ele, este relacionamento fez enorme sentido logo desde o início: “Depois da guerra, foram os americanos que fizeram com que os japoneses chegassem à conclusão que tinham de recomeçar tudo e de um modo diferente: os soldados norte-americanos e os oficiais japoneses conduziam carros americanos, pelo que inevitavelmemte, a indústria japonesa teve de olhar para os carros americanos. Mas […] os designs eram um pouco desproporcionais, já que não levaram em consideração as estreitas estradas japonesas. O Japão viu, então, que Itália e a restante Europa tinham características mais similares às deles, para além de que havia uma forte preocupação com o trabalho artesanal de uma indústria com quem poderiam cooperar para fazer automóveis. […] Nós, como mentes criativas da arquitectura automóvel, eramos relevantes: eles ficaram claramente encantados com o modo com víamos as coisas e com o que poderíamos oferecer”, explica Giugiaro.
As forças conjuntas da tecnologia japonesa e da estética italiana revelaram-se um enorme sucesso: Com cerca de 400.000 unidades da primeira geração do Mazda Familia construídas entre 1963 e 1968, a gama conquistaria uma robusta quota de mercado na sua classe, de 44%. Mas este foi apenas o início da parceria.
Uma luz brilhante
Giorgetto Giugiaro era oriundo de uma família de artistas e também ele aspirava a sê-lo desde muito jovem. Enquanto estudava arte em Turim, descobriu a sua paixão pelo design de automóveis e começou a frequentar cursos nocturnos de design técnico. O seu talento excepcional não passou despercebido e, em 1959, com apenas 21 anos, tornou-se responsável pelo Centro de Estilo da Bertone, em Turim. Também Hide ficou impressionado com o jovem designer e pediu aos decisores da Mazda que o deixassem criar outros modelos. E, na época, Giorgetto tinha algo que se lhes adequava: enquanto trabalhava no design relativamente domesticado do Mazda Familia, desenhou também o esquisso de uma magnífica berlina de quatro portas com características vanguardistas, como a tracção dianteira e um motor rotativo fabricado pela Mazda. O nome de código SP8, como foi denominado o conceito, continha a óptica elegante que a Mazda procurava nos seus planos para uma berlina de maiores dimensões, que sucedesse ao Mazda Familia.
No entanto, estes planos previam um motor de pistão convencional e tracção traseira. Com apenas alguns ajustes que contemplassem estas diferenças tecnológicas, incluindo uma ligeira redução do design em forma de cunha, o SP8 tornou-se no “Luce”, termo italiano para “luz”»… sendo efectivamente brilhante. Um anúncio publicitário do Mazda Luce descreveu o seu design como “fino, elegante e moderno, suavemente esculpido com contornos clássicos”. E não era um exagero: A carroçaria delicada e sofisticada com uma frente alongada, o design característico dos pilares e os faróis duplos geraram um autêntico sucesso na indústria automóvel quando foi apresentado ao público em 1965.
Também Maeda, Director de Design Global, aprecia muito em particular a criação de Giugiaro: “O Luce Coupé era o símbolo da elegância na Mazda.” A produção teve início em 1966 e, pela primeira vez, um automóvel de passageiros Mazda era exportado para a Europa, contribuindo para a percepção da Mazda como uma marca de automóveis direccionada para o design, logo desde a origem. Em 1969, o Mazda brilharia ainda mais com o Mazda Luce R130 Rotary Coupé. Apresentado pela primeira vez no Salão Automóvel de Tóquio de 1967, como Mazda RX 87 Touring Coupé, o luxuoso coupé de capota rígida incluía um motor rotativo e tracção dianteira, bem como janelas sem caixilharia e um tejadilho de vinil de elevada qualidade. Viria a demonstrar, com elevada ousadia, a ambição clara da Mazda de entrar no segmento de automóveis topo de gama, o que se refletiu no slogan publicitário “Senhor da Estrada”.
Com menos de 1.000 unidades Mazda Luce R130 construídas, actualmente o modelo tornou-se num raro artigo de colecção. Mais importante ainda, a série Luce como um todo é provavelmente lembrada como o primeiro ícone do design automóvel oriundo de um fabricante de automóveis japonês.
Um passado a olhar para o futuro
Nos anos seguintes, o design italiano influenciaria outros modelos da Mazda, como o Mazda R100, o primeiro embaixador mundial dos motores rotativos. Construído entre 1968 e 1973, tornou popular o conceito de motor, especialmente no mercado norte-americano, com a venda de um total de 100.000 coupés e berlinas. Outro exemplo foi o antecessor do famoso modelo Mazda 626 do segmento médio-alto D, o Mazda 616, que a marca comercializou entre 1970 e 1979, constituindo, também, a base para o Mazda RX-2, que alimentou ainda mais o entusiasmo do público norte-americano por motores rotativos e que, em 1972, conquistou o galardão “Automóvel Importado do Ano”, atribuído pela imprensa da América do Norte. E, naturalmente, os automóveis Mazda mais exóticos foram também profundamente influenciados pela ligação que Hide ajudou a construir com a Bertone, em geral, e Giorgetto Giugiaro, em particular.
Após chefiar o ateliê de design da Bertone ao longo de seis anos, Giorgetto Giugiaro mudou-se para a Carrozzeria Ghia, onde criou o design de vários supercarros lendários. Um dos seus projectos de maior sucesso foi o De Tomaso Mangusta de 1967, com um capô bipartido longitudinalmente na parte de trás, logo acima do seu motor central. O capô abria-se de forma semelhante às portas do tipo asas de gaivota, uma característica de concepção que também foi incorporada no Mazda RX-500, em 1970, um fantástico concept car com um motor rotativo de montagem central, e que levou a tecnologia mais longe do que nunca.
Em 1981, a Bertone e a Mazda trabalharam em conjunto mais uma vez para criar o impressionante concept car Mazda MX-81 Aria. Nos salões de automóveis onde esteve exposto, causou espanto pelo seu design futurista com luzes traseiras integradas no pilar C, detalhe que, muito mais tarde, se tornaria moda entre outros fabricantes de automóveis. O seu coeficiente de resistência de 0,29 estava, também, muito à frente do seu tempo. No entanto e muito provavelmente, o factor mais surpreendente do Mazda MX-81 encontrava-se no seu interior, que incluía um habitáculo virtual em forma de ecrã, em vez dos mostradores habituais. Autêntica ficção científica para a época.
Felizes para sempre
Actualmente, Ikuo Maeda continua a ter uma elevada consideração por estes designers italianos: “A Itália é um país com uma profunda tradição, mas o que mais admiro e acho surpreendente é a sua capacidade de inovação e, por conseguinte, de adicionar novidades, respeitando essa tradição.”
Maeda tem, ainda hoje, na sua posse um abre-cartas criado pelo designer e artista italiano de objectos Enzo Mari, peça que herdou do seu pai e que se tornou num factor vital para o seu interesse pelo design: “O encontro com esse objeto representa um momento muito importante da minha vida”, afirma. “É prático, fácil de segurar e funcional, o que é típico do design italiano.” Também se lembra com carinho de ter conhecido Giugiaro e Giovanni Bertone pela primeira vez quando estudava no segundo ciclo: “Achei-os muito simpáticos. Naturalmente, não entendi o que diziam, nem sequer me lembro se falavam italiano ou inglês. Mas o que me impressionou foi a paixão que tinham e que podiam transmitir a todos: o entusiasmo típico italiano.”
Quando Ikuo Maeda assumiu a responsabilidade de unificar o design da Mazda, em 2010, a cooperação anterior da Mazda com a Bertone e Giugiaro era uma das suas principais considerações. Afinal, o conceito de Jinba Ittai: “união entre o cavalo e o cavaleiro”, significa olhar para o design tanto quanto para a tecnologia.
Mais tarde, quando Maeda criou o Mazda Vision Coupé, em 2017, como um vislumbre do futuro do design da Mazda, entrou novamente em jogo a combinação das qualidades italianas e japonesas: “Tive vários automóveis italianos. São construídos por pessoas que conhecem a essência do automóvel. Os automóveis italianos expressam um sentido de mestria na construção combinada com um estilo excelente. A influência continua a ser muito forte nos nossos dias. O ‘concept car’ Vision Coupé representa uma reinterpretação da elegância evoluída para o nosso tempo. É um automóvel construído com a sensibilidade italiana, mas renovado segundo os cânones japoneses.”
O que Maeda extraiu do fantástico design italiano dos anos 60 em diante foi a forma como os mesmos constroem uma estrutura forte para a tecnologia, em vez de serem apenas roupas que a revestem arbitrariamente. Ao combinar esta escola de pensamento com as subtilezas da tradicional mestria na construção japonesa, como linhas que fluem harmoniosamente e formas naturais, criou uma síntese adequada das lições do passado e da própria visão da Mazda para com o seu futuro.
Entretanto, Hide continuaria a trabalhar com Giugiaro até 1992, altura em que decidiu deixar de vez o design automóvel. Comprou, a meias com Marisa, uma quinta biológica e vinícola na Toscana, onde o casal se delicia até hoje com a merecida dolce vita. E o seu papel vital como uma das pessoas mais influentes no design de automóveis japoneses nunca será esquecido: em 2017, o seu nome foi introduzido no “Japan Automotive Hall of Fame”, o culminar de uma história que começou com um jovem a viajar de moto pelo mundo, onde encontrou o amor da sua vida.